A verdade por traz do feriado do dia dos Mártires no RN
FERIADO DE 3 DE OUTUBRO É INSULTO A INDÍGENAS
Por: Alípio de Sousa Filho – Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN.
Causa espanto saber que a Assembléia Legislativa do Estado aprovou por unanimidade
e a Governadora sancionou lei criando o feriado estadual de 3 de outubro para
culto público e oficial dos chamados mártires de Uruaçu e Cunhaú. A lei estadual 8.913, de 6 de dezembro de
2006, é um insulto aos nossos indígenas de ontem e de hoje e um atentado aos
princípios do Estado Laico. Inconcebível que seja o próprio Estado a colaborar
com a igreja católica nos seus intentos de criar beatos, santos, mártires,
milagres etc. e a partir de qualquer história forjada e narrada como se quer. O
que se chama de massacre dos mártires de Uruaçu e Cunhaú (mártires católicos!,
pois do outro lado estavam protestantes holandeses e indígenas) é fato ocorrido
no século XVII e não difere de outras situações que o território brasileiro
conheceu, em todas as partes, no período colonial. No fundo, o que se visa
exaltar é a fé católica que, nesse mesmo período histórico, foi responsável
pela morte de milhões de indígenas. Os tapuias e potiguares que habitavam a
região e que, ao lado de holandeses calvinistas, figuram na narrativa
construída sobre o tal martírio, que agora se visa cultuar, faziam parte da
grande civilização indígena aqui existente que, pela catequese cristã e
predominantemente católica, viu ser dizimados três milhões de seus integrantes
nos três primeiros séculos da colonização. Que cidadãos, isolados ou em grupos
organizados, queiram praticar suas crenças, organizar e participar de romarias
(a cavalo, em paus-de-arara, bicicletas, motos, carros ou a pé), que as
igrejas, incluindo a dos católicos, queiram difundir suas crendices, incluindo
inventar milagres e os santos milagreiros, que o façam no usufruto dos direitos
que são os seus. Todavia, o Estado não pode ser cúmplice do absurdo que é
tornar feriado um dia da semana para culto de uma narrativa que insulta os
indígenas de ontem e de hoje.Os poderes Legislativo e Executivo estaduais, com
a criação do feriado de 3 de outubro, dão mostras que não praticam a laicidade
exigível desses poderes no âmbito da esfera pública e estatal e confirmam que,
no Brasil, o Estado, longe de ser laico, permanece vergonhosamente submetido,
pelas mãos de seus dirigentes, aos ditames e interesses de igrejas e religiões.
Os interesses da igreja católica (ou de qualquer outra) não podem ser colocados
acima do caráter universalista que o Estado está obrigado a preservar para
permanecer como esfera autônoma, independente. Esta que é a única condição do
Estado poder legitimamente representar a sociedade como um todo e agir pela sua
emancipação social, livrando-a do domínio de crenças sem fundamentos que se
tornam obstáculos aos seus avanços culturais, sociais. No Brasil, são inúmeros
os exemplos de ações das igrejas, contrariando a implementação de medidas
emancipatórias pelo Estado.
Multinacional capitalista, que enriquece com a mais-valia da
fé alheia explorada, mas continuamente sedenta de criar santos e milagres para
a conservação do seu domínio sobre uma população pobre e abandonada à sua
própria miséria (emocional, cultural, econômica), a igreja católica não pode
contar com a cumplicidade dos dirigentes do Estado para realizar seus intentos.
O fato representa uma tomada de posição desses dirigentes em favor de um
segmento da sociedade, e apenas de um de seus segmentos, ferindo o principio da
laicidade e da universalidade de valores a predominar e a ser preservado pelo Estado
no âmbito das decisões político-públicas.
Se há algo a ser feito sobre o que se passou em 1645 é o
Estado narrar a tragédia de nossos indígenas, vencidos pela violência,
dividindo-se, em desesperadas estratégias, entre os colonizadores.
(Publicado
no Diário de Natal em 25/09/2007, p.2)
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